Por Mayariane Castro
Sonhos são subjetivos, eles mudam de pessoa para pessoa e variam dentre as infinitas possibilidades da vida. A realização de um dos sonhos de Lucineide Amorim se deu com a criação do grupo de quadrilha que hoje ela dirige, o Xodó do Cerrado, dentro de uma escola pública de Planaltina (DF), Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Fátima , em Planaltina (DF). A região administrativa conta com uma população nordestina de 53%, segundo pesquisa da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Não apenas para si, mas o grupo também foi a realização de um sonho para os adolescentes que participavam do projeto antes mesmo dele ser concretizado.
Ela ensaiava as quadrilhas para a escola em que trabalha assim como outros professores fazem anualmente quando chega a época das festividades juninas. Porém, com ela, foi diferente. O sentimento foi diverso. Ela sentiu que precisava de mais tempo para poder florescer aquela ideia em meio a um “jardim” que perdia sua cor. Assim, o grupo surgiu em 2013 com o desejo de resgatar e preservar a cultura regional brasileira e colaborar como desenvolvimento pessoal, social e pedagógico dos alunos da escola pública
Confira um trecho da apresentação de 2019:
Segundo Lucineide Amorim, a ideia inicial era de um grupo de quadrilha para que as pessoas conhecessem a cultura e, ao mesmo tempo, incentivar a juventude a dançar nas festas juninas e mostrar que também era algo legal e divertido, fugindo daquela quadrilha de escola em que os alunos participavam em troca de pontos. O intuito do projeto era resgatar e preservar a cultura junina que estava tão perdida pelas escolas de Planaltina.
Em meio a felicidade com a criação do projeto, Lucineide se “perde” em escolher o que mais gosta. O resgate cultural, a mensagem que o projeto busca passar, o impacto positivo na vida dos alunos... são muitas opções a escolher. Porém, seu amor pela profissão fala mais alto. “Dar oportunidade aos estudantes de conhecer, vivenciar momentos, lugares, histórias, experiências diferentes e observar outras perspectivas de vida é muito gratificante”, relata.
Grupo se apresentou no Aniversário de Planaltina, em 2019 (Foto: Mayariane Castro)
O projeto contribui para o resgate da cultura regional brasileira como forma de despertar a identidade social dos estudantes na construção da cidadania, além de promover uma maior interação, criando um ambiente favorável ao processo de ensino e aprendizagem através da prática da dança no ambiente escolar. A criadora enfoca no impacto para os participantes. Durante os minutos de dança da quadrilha, eles são os protagonistas da própria história.
O incentivo às pessoas conhecerem a cultura nordestina através da quadrilha é um dos objetivos do grupo (Foto: Mayariane Castro)
Sem explicar com palavras, os alunos conseguem captar a essência e a importância do projeto em atos e no “dois para lá e dois para cá” da dança. O aluno Victor Gabriel, 19 anos, mostra a infinidade de aprendizados que são possíveis de obter no grupo.
“Eu gosto muito dos dias de oficina, prática e teórica. Na teórica, a gente estudava sobre a origem das quadrilhas no Brasil, sobre a importância de manter a cultura junina viva, sobre o que de fato o projeto queria transmitir para o público, entre outras coisas. Já nas oficinas práticas, a gente tinha aulas sobre teatro, ritmo, musicalidade, alongamento, aulas de forró, aulas de maquiagem, aulas de bordagem e ensaios.”
Lucineide Amorim segue pelo caminho de decidir qual será o próximo passo do grupo. Ela explica que a cada ano o trabalho possui uma identidade e um tema diferentes para desenvolver uma nova apresentação, mas nunca deixando os elementos essenciais da quadrilha de lado, que são os noivos e a representação de Lampião e Maria Bonita, importantes figuras da cultura nordestina.
Figuras históricas importantes para o Nordeste são representadas na dança (Foto: Mayariane Castro)
Para a dança, não há barreiras e Lucineide expande os horizontes do grupo sempre que pode. Tudo se inicia com a decisão do tema e a partir daí, o resto se ajeita. Para a coreografia, Lucineide conta que estuda outros ritmos brasileiros e até estrangeiros para agregar mais a identidade do grupo, que se completa com o toque final que os estudantes colocam ao ajudar a construir a coreografia do grupo. O tema de 2019 foi baseado na Festa do Divino, patrimônio cultural imaterial do DF.
Temas das apresentações variam de ano para ano (Foto: Mayariane Castro)
Xodó do cerrado
Um mês distribuído pelo ano é o quanto eles se apresentam. São cerca de 25 a 30 apresentações anuais do grupo em em outras escolas, igrejas, locais públicos e comunitários, festas juninas e culturais, como forma de incentivo e resgate da Cultura Junina e da Cultura Planaltinense, como pontua Lucineide. São 30 dias onde os adolescentes que participam do Xodó possam sentir a emoção e a adrenalina de estar nos palcos.
O Xodó do Cerrado é um projeto educacional e não participa de competições. O foco é voltado para esse resgate cultural e as recompensas são as experiências e os inúmeros sorrisos nos rostos dos que participam. O Xodó do Cerrado, atualmente, conta com os prêmios do Ministério da Cultura - edição Leandro Barros 2017 e dois prêmios no Brasília Junina do GDF 2018 e 2019. Lucineide não esconde a alegria com os prêmios. “Foi como um carimbo de que estava certo o que eu estava fazendo”.
Ah, que falta faz um xodó...
“Que falta eu sinto de um bem, que falta me faz um xodó…”. São essas palavras que Dominguinhos, referência para a música nordestina, usa para começar sua música “Eu só quero um xodó”. Esses dois primeiros versos são comuns nos ensaios e também capazes de representar o sentimento de mais de 20 adolescentes que fazem parte do Xodó do Cerrado durante a pandemia, no qual os ensaios foram interrompidos. Ah, que falta faz um xodó…
O sorriso no rosto de Sthefany Apolinário, 17 anos, não mente. A felicidade é estampada no rosto da jovem permanece durante os 30 minutos de coreografia, sem vacilar por nenhum momento. Ela, que foi a noiva quadrilheira do Xodó do Cerrado em 2019, era capaz de contagiar o público com os acordes e notas musicais do xote nordestino. Sthefany não está atualmente no grupo por motivos pessoais e reforça que ainda irá voltar. “Quero voltar algum dia ainda para dançar”. Ah, que falta faz um xodó…
A felicidade em dançar é estampada no rosto daqueles em palco (Foto: Mayariane Castro)
Sthefany ainda relembra com carinho que os momentos mais marcantes para ela era a alegria conjunta do grupo antes e após as apresentações. “A emoção dos segundos antes de entrar no palco é indescritível, todas as sensações parecem ser potencializadas pela adrenalina e criam um misto de sentimentos”. Ao sair do palco, a adrenalina ainda corre nas veias deles e tudo parece se mover em câmera lenta ao redor, conforme ela garante. O peito se enche com o sentimento de dever cumprido. “Existe a apresentação que a gente faz na própria escola, essa é aquela que sempre dá um friozinho na barriga”, explica Gabriel Santos, outro integrante dessa grande
Para um quadrilheiro, ganhar o papel de um dos noivos é uma honra pois a quadrilha gira em torno do casamento dos dois personagens. Victor Gabriel entrou no grupo em 2018, movido pelo seu amor por dançar e por ter se interessado por quadrilhas desde cedo. Usando o amor como faísca, sua recompensa veio sem ele perceber, onde ele ganhou o papel de noivo apaixonado no mesmo ano que ingressou no grupo. O personagem era cobiçado, e ele confessa que não estava com esperança de ganhar. Naquele dia, só em casa pôde perceber o quão importante era ter se tornado o noivo da quadrilha. “Ainda lembro do nervosismo em que eu estava antes de entrar no “arraiá“ da escola que estudamos e é onde o projeto foi criado. Depois da apresentação, fiquei muito feliz em saber que alguns dos meus ex-professores ficaram orgulhosos por me ver dançando”.
Assim como Sthefany, o jovem Kauan Gabriel, 17 anos, também explica a saudade que possui do grupo,. “Não participo mais do grupo, mas desejo tudo de bom para eles e que eles possam ganhar cada vez mais reconhecimento. Ele significa muito para mim porque ele mudou a minha vida...”, confessa o rapaz. Ex-membros e atuais participantes sofrem com o mesmo sentimento: a falta de um xodó, do Xodó do Cerrado.
Um xodó pra mim do meu jeito assim
Gotas de suor escorrendo pelo rosto, respirações ofegantes e corpos recuperando o fôlego pela sala após minutos incansáveis de ensaio. Calmamente, os participantes sentam-se em uma roda para conversar e ouvir os recados que a coordenadora Lucineide, Tia Lu para os íntimos, tem para passar para o grupo. Ela repassa os cronogramas de apresentação, dá recados e os corrige em relação a dança.
Os participantes relatam o grande carinho que a "Tia Lu" tem com eles (Foto: Mayariane Castro)
“Esse momento acabou virando algo muito único do grupo. Um momento de risadas e comemorações que nomeamos de ‘Os recadinhos do coração da Tia Lu”, explica Marlia Gomes
Marlia Gomes conta em detalhes sobre a memória especial que ela guarda do grupo. Para ela, o ‘Xodó’ é união, é companheirismo devido ao grande tempo que eles passam juntos, a convivência faz com que eles compartilhem experiências e problemas, se ajudando como família. Ela não esconde a importância do grupo para si e conta que é divertido estar com o grupo. “O Xodó é uma das melhores coisas que me aconteceu… Lá todo mundo é família”.
Sentimento coletivo
Para Fillype Cândido, 16 anos, o Xodó significa empenho, garra, determinação, coragem, e muita disciplina. Ele explica que é preciso um pouco de tudo isso pra fazer parte dele. “A quadrilha entrou como gancho na minha vida, e logo me apaixonei pela história, dança e comidinhas típicas. A quadrilha significa muita cultura.” Fillype, neto de piauiense, explica que o grupo é importante não só pela questão cultural, mas também pelo de suporte a comunidade.
Fillype ainda relata sobre o companheirismo dos integrantes e como isso faz parte de uma das suas memórias marcantes com o grupo, que são as confraternizações. ”A gente se reúne para festejar e comemorar o sucesso que o ano foi para nós, lembramos de cada apresentação concluída e todos os perrengues. Então, digo que na confraternização tenho a sensação de dever cumprido. Por isso me marca muito.”
Para Lucas Pereira, 17 anos, o Xodó significa paixão, aconchego, estudo, família, amigos, aprendizado sobre cultura. O jovem, neto de nordestinos, destaca que o que mais gosta no grupo são as amizades, o companheirismo que existe entre todos e o carinho que Lucineide os trata. “É como se fosse uma segunda família para mim. Gosto muito das amizades que eu pude fazer quando entrei nesse projeto, pessoal muito educado, prestativo, te ajuda quando precisa sempre."
"E também pelo amor que a nossa professora Lucineide tem por nós, elas sempre nos tratou como se fossemos filhos dela", confessa Lucas Pereira.
O Xodó do Cerrado se tornou uma família (Foto: Mayariane Castro)
Para Gabriel Santos, vindo de família nordestina, o Xodó é uma família. É algo que carrega um significado indescritível para si. Ele relembra que uma das memórias marcantes foi quando os integrantes foram para o semáforo para tentar conseguir ajuda para pagar os figurinos da apresentação. Assim como outros jovens falaram, o Xodó proporciona muitas experiências compartilhadas, sejam momentos de alegria e vitória, sejam momentos de luta e dificuldade. “O que eu mais gosto no grupo é a liberdade que a gente tem lá dentro, liberdade de sermos quem realmente somos. Com certeza vou sentir muita falta quando eu sair…”. O jovem comenta já com tristeza para o encerramento deste ciclo no futuro.
Para Sthefany Apolinário, o Xodó se tornou um refúgio, um local no qual ela poderia fugir da rotina e poder experimentar coisas novas. É o local onde ela pode ser livre, pode viver várias vidas através da dança. Ela, que possui família paterna do Nordeste, relata que o grupo foi uma forma que ela achou para se soltar mais e também uma oportunidade de aprender mais sobre quadrilhas e Nordeste. “O que eu mais gosto no grupo é a dedicação para aprender mais em todos os membros, a energia transmitida por todos… Por conta da quadrilha, criei muitas amizades dentro do grupo e fora.”
Para Marliane Oliveira, o Xodó significa família, humildade, cumplicidade, amor, caridade, gratidão, significa crescimento em conjunto, em união. Ela, filha de nordestinos, explica ainda mais que o grupo foi essencial em sua vida pois a ajudou muito a crescer e amadurecer como pessoa e enfatiza em como é uma experiência incrível que todo mundo deveria ter. O grupo nunca perde essa emoção para si e ela explica que sempre parece ser a primeira vez. “Todas as apresentações são muito especiais, sempre parece ser a primeira vez, todas despertam uma emoção muito grande em meu coração pois é gratificante ver o brilho nos olhos do público”.
Para Victor Gabriel, não há outra palavra que resuma o grupo que não seja gratidão. Desde a sua entrada, o grupo o surpreendeu positivamente, ainda mais com a conquista do papel de noivo em seu primeiro ano. “O projeto cultural Xodó do cerrado foi o divisor de águas em minha vida. Entrei no projeto no ano de 2018 com 17 anos, e hoje olhando para trás posso dizer, me tornei uma pessoa melhor, mais responsável e humilde”.
Estandarte representativo do grupo (Foto: Mayariane Castro)
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