Conheça a história pernambucana que levou a ciranda para o mundo
Por: Maria Clara Andrade
É com o movimento das ondas do mar e ao som das mulheres que cantavam a espera de seus maridos, é que a jovem Lia de Itamaracá se apaixonou pela música e pela dança. Aos 76 anos, tendo se tornado patrimônio vivo da cultura pernambucana e referência do que é a ciranda no país, Maria Madalena Correia do Nascimento, a menina da vida inteira, divide a ciranda com quem entra pra roda.
A 40 km de distância de Recife, na praia de Jaguaribe, em Itamaracá, uma Lia de 12 anos se habituava a cantar e compor as primeiras músicas junto ao mar, seu amigo e inspiração de longa data. Mesmo sem membros da família interessados no meio artístico, a rainha da ciranda seguiu cantando e dançando, até assumir a responsabilidade – como fala com orgulho – de se apresentar aos 19 anos “foi bastante tempo até cantar mesmo, mas quando peguei o jeito, peguei! E to aqui até hoje, não foi difícil não”, brinca.
A musicista começou a longa carreira dividindo o tempo entre a arte e o ofício culinário. “Durante a semana, eu trabalhava no Sargaço, um bar e restaurante aqui em Itamaracá, nos fins de semana, aos sábados, eu tinha minha ciranda”, conta Lia, que já encantava quem passava pelo Sargaço a noite e tinha o prazer de ouvir a voz forte e característica da cirandeira. Depois dos tempos no restaurante, dona Lia ainda trabalhou como merendeira em duas escolas públicas da ilha, até se aposentar.
Apesar de ter lançado seu primeiro LP “Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda” em 1977, a cirandeira não atingiu a fama na época e nem havia sido paga. Somente na década de 90, quando conheceu seu atual produtor, Beto Heres, é que Lia conseguiu a alavancar a carreira, “por aqui, ninguém liga pro pobre e nem investe na cultura, se não fosse Beto, ainda estava a ver navios”, conta a musicista, que fez sua estreia triunfal em 1998, no festival Abril pro Rock, onde foi aplaudida por doze mil pessoas.
Nos anos 2000, aos 57 anos, a rainha da ciranda lançava o “Eu sou Lia” seu primeiro álbum e trabalho que trouxe a artista reconhecimento no Brasil e no exterior, tendo sido distribuído também na França, por um selo world music. A voz ilustre de Lia chamou a atenção, sendo chamada de “diva da música negra”, pelo The New York Times e tendo sua música definida como ‘trance’ pela imprensa no exterior, numa tentativa de explicar os efeitos que sua voz causa nas pessoas.
Lia de Itamaracá agora é Lia do Mundo e tem orgulho disso “ver meu trabalho reconhecido por ai no meio do mundo é ‘dez’! É o que eu gosto de fazer, cantar e dançar... Eu me sinto bem”. A cirandeira também passeia por outras áreas da cultura, tendo feito participações no cinema e na televisão como nos filmes “Parahyba Mulher Macho (1983)”, “Sangue Azul” (2015), da minissérie “Riacho Doce” (1990) e em “Recife Frio” (2009), curta de Kleber Mendonça Filho.
Querida pelo diretor pernambucano, Lia foi convidada para atuar em seu último filme, “Bacurau” (2019), onde a musicista interpreta dona Carmelita, a matriarca de uma cidade do interior de Pernambuco. “Me senti muito bem trabalhando de novo com Kleber em Bacurau, ainda mais fazendo o papel de Carmelita, ter o papel de uma personagem que morre e ressuscita, é bom né?”, brincou.
A presença forte da filha de Iemanjá dentro do cenário cultural pernambucano lhe trouxe o reconhecimento devido: se tornou Patrimônio Vivo do estado em 2005, representando a cultura popular e se tornando guardiã da ciranda no Brasil. E em agosto de 2019 foi nomeada Doutora Honoris Causa, pela Universidade Federal de Pernambuco (UNPE), título que é dado aqueles que contribuem a favor das artes, das ciências e da cultura em geral.
Infelizmente, o governo pernambucano parece ter se esquecido de Lia e de outros artistas que tem lutado contra a desvalorização da cultura, antes e durante a pandemia do novo coronavírus. “A gente está a padecer esperando que eles façam algo, enquanto tem mestre, músico e artista que não tem o que fazer e depende da música pra sobreviver”, explica entristecida a cirandeira.
“Quando pedem show, pagam quando querem e não é assim… Eu não trabalho sozinha, tenho uma equipe e tenho responsabilidade com a produção, com os músicos e com o transporte e a alimentação deles. Tudo isso é trabalho”. Para arrecadar verba para os músicos, Lia tem organizado lives com shows com muita música e dança “graças a Deus, tenho minha aposentadoria, não estou passando fome, tenho meu patrimônio vivo e estou bem, mas e eles?”.
Em nota, a Secretaria de Cultura de Pernambuco e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) esclareceu que foram pagos os cachês relativos ao ciclo carnavalesco de 2020 e outras pendências e reforçando ainda a importância da artista para o estado, que tem prioridade na contratação de editais de ciclos festivos como Carnaval e São João.
A cirandeira também arrecada dinheiro para ajudar a reerguer o Centro Cultural Estrela de Lia, na praia de Jaguaribe, que fica na Ilha de Itamaracá, onde Lia sempre volta após as turnês e onde realiza grande parte de seu trabalho. Sua luta tem ido além da busca de um pagamento apropriado para os artistas e pela valorização da cultura, a artista também convida as pessoas a se juntarem a ciranda “na ciranda não tem preconceito, todo mundo dá as mãos e dança branco, preto, criança, velhos, não tem preconceito”, reforça sempre com muito carinho.
Lia de Itamaracá tem sido presença viva, forte e resiliente e assim como na roda da ciranda e no movimento das ondas do mar, vem e volta com força.
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