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Transições em Movimento

Por Mayariane Castro





Filho de pais pernambucanos, já falecidos, o arte educador e pedagogo Lehandro Lira, que é brasiliense, possui sangue nordestino em suas veias. E é esse Nordeste, é a cultura deste lugar que é a genuína manifestação do grupo que ele criou, a Transições. O principal foco do grupo são as danças populares nordestinas, como o frevo, maracatu e xaxado. Mas, seguindo o seu nome e seu significado, o grupo transita entre estilos de dança e também são usadas bases de street jazz, dança contemporânea, ballet clássico. “A Transições transita nessas linhas de corpos híbridos e diferentes para trazer uma vertente diferenciada”, explica o criador do grupo.


Transições. Palavra que significa mudanças e passagem de uma coisa a outra. E foi isso que o professor de dança popular Lehandro Lira estava passando em sua vida no ano de 2014 quando criou o grupo com esse mesmo nome. Transições. Em meio a mudanças que envolviam crises existenciais e dificuldades de enxergar planos para sua vida, Lehandro criou o grupo com o desejo no coração de suas quatro alunas na época.


Porém, não apenas o desejo move a criação de projetos. Quando se fala em arte no Brasil, ele entende que automaticamente já existe uma barreira inicial para criar e tirar do papel qualquer projeto. Com a Transições não foi diferente. Fazer arte no Brasil é difícil. “É muito complicado, uma vez que as artes vistas em Brasília e no Brasil, não são bem aceitas. Fazer arte no Brasil é muito difícil”. A falta de apoio e investimento governamental na arte e o tabu da sociedade que a enxerga como distração e não como um emprego, como algo viável para sustentar alguém, cria essa barreira entre a produção artística no país.


Estandarte representativo do grupo (Foto: Mayariane Castro)


Mas, de passo em passo, Lehandro conseguiu criar o grupo e sempre o alimentou com o combustível necessário para que a chama não apagasse. Ele o alimentou com arte. O criador relata com carinho que o prêmio mais marcante foi o Edital dos FAC, em 2017. ”Foi o nosso primeiro prêmio e o espetáculo que ganhou foi “As Faces de Um Povo Centenário”, uma produção que busca contar um pouco da história de Planaltina através da dança”. Com o prêmio, o grupo se apresentou em Planaltina, Samambaia e Ceilândia. A interligação do grupo com suas raízes intrínsecas do Nordeste e do DF foram mostradas ao público com uma obra que mostra a história da cidade onde o grupo foi criado com o estilo de dança do Nordeste.


Já em 2018, o grupo surgiu com uma nova roupagem. Espetáculo novo, prêmios diferentes e o início de uma caminhada de muitas conquistas para a arte local. Aproveitando de uma das poucas obras do Governo voltado para a dança, o grupo utilizou do Centro de Dança do Distrito Federal para ser o palco das suas produções antes de subirem aos palcos. Encarando o mar de oportunidades que os aguardava, a Transições mergulhou de cabeça e participou da mostra competitiva do SESC. Ao ressurgirem na superfície da água cultural, o grupo viu que havia ganhado o prêmio de melhor grupo com a apresentação da obra “Recortes de um Corpo Mambembe”.


Confira a performance do grupo:



Essa obra é um marco no grupo pois foi com ela que veio a notícia de que o grupo havia sido selecionado para a edição de 2019 do maior festival de dança do mundo, o Festival de Joinville, que ocorre anualmente no sul do país e oferece inúmeras oportunidades para dançarinos de todas as idades, etnias e nacionalidades. Em nota em sua página oficial do grupo, eles lamentam. Lamentam pela falta de patrocínio para obras culturais que os impediu de poder participar do evento.


Quando uma porta se fecha, outra se abre. É este o dito popular que é usado para nos consolar quando algum plano dá errado ou quando perdemos alguma oportunidade boa. Porém, essa porta se abriu rápido para a Transições. Em 2019, começa o projeto Pé na Estrada. “O projeto ‘Pé na Estrada’ foi um prêmio que nós ganhamos do Ministério da Cultura. O prêmio de culturas populares na edição deste ano foi a edição da Selma do coco e a intenção era levar os bailarinos para vivências da dança popular nordestina”, explica Lehandro.


Memórias além do quadrado


Amaraji. Pequena cidade do estado de Pernambuco com pouco mais de 20 mil habitantes, 96km são o que a distanciam da capital Recife. É lá que nascem as raízes nordestinas da integrante Kenia Cavalcanti. Seus pais e seus irmãos, pernambucanos nascidos em Amaraji, estabelecem essa ponte entre ela e a cultura nordestina que está presente dentro de casa desde que ela nasceu em Goiás. Sempre em contato com a arte do movimento e do corpo, a jovem participava de um grupo de quadrilha inicialmente e após assistir o espetáculo “As Faces de um Povo Centenário”, ela foi convidada a fazer parte do grupo Transições. “Desde que entrei para a Cia, tem sido um porto seguro, uma nova oportunidade de vivenciar a dança que sempre foi minha paixão. A Transições vem sendo uma grande porta de entrada para novas experiências, conhecimento externo e interno”.


A dançarina conta que sua memória mais marcante foi graças ao projeto Pé na Estrada, que em janeiro deste ano realizou viagem para estudos culturais do estado de Pernambuco. “O Pé na Estrada foi um projeto extremamente incrível, com uma proposta inteligente que tem rendido bons frutos nos trabalhos do grupo, mesmo que a pandemia tenha acabado com alguns de nossos planos. O que foi absorvido nessa viagem jamais será esquecido, não só pela oportunidade de conhecer culturalmente o que o Nordeste tinha a oferecer, mas a conexão com os outros integrantes foi muito importante.”



Lehandro explica que a viagem foi custeada com recursos do Conexão Cultura que é um projeto da Secretaria de Cultura do Distrito Federal ligado ao Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Este projeto governamental existe desde 2016 e existem quatro tópicos para selecionar os grupos que receberão o apoio financeiro, eles são circulação nacional, internacional e mista; participação em eventos estratégicos nacionais e internacionais; promoção de plataformas; e intercâmbios e residências artísticas, técnicas ou em gestão cultural e capacitação.


Assim como Kenia, ele relembra que uma das memórias mais marcantes durante o projeto foram duas ocasiões que os alimentaram ainda mais com a cultura nordestina. Em 2019, o grupo teve a oportunidade de dançar no Paço do Frevo, espaço cultural na cidade de Recife dedicado à difusão, pesquisa, lazer e formação nas áreas da dança e música do frevo, visando propagar sua prática para as futuras gerações. O local conta com escola de música, escola de dança, centro de documentação e exposições.


A outra oportunidade marcante foi quando o grupo visitou a Casa da Rabeca, mais um lugar que é referência da cultura popular nordestina. O local foi criado em 2002 pelo Mestre Salustiano e tem como objetivo o enaltecimento de manifestações populares como frevo, maracatu, coco, ciranda, cavalo marinho e forró com programações diversas, como shows, oficinas e exposições. Antes de ser criado, Salustiano utilizava a arena Iluminara Zumbi para as apresentações culturais, local idealizado por Ariano Suassuna, durante seu mandato de secretário de cultura.


​As influências do Mestre Salustiano na cultura nordestina se dão em diversos âmbitos. Ele, que é pernambucano, é considerado um dos grandes nomes do maracatu no estado, também considerado precursor do manguebeat. Também foi artesão e ajudou na confecção de personagens do bumba-meu-boi, do cavalo-marinho e de bonecos mamulengos. Visitou os países Bolívia, Cuba, França e Estados Unidos com a sua arte, levando a cultura nordestina mundo afora.


Raízes pelo caminho


Falar sobre coreografias favoritas com um coreógrafo é como pedir uma mãe para escolher seu filho favorito, é basicamente impossível. Para Lehandro, é difícil fazer esta escolha porque cada obra possui um processo diferente e um estilo diferente,cada uma com a sua individualidade e importância para a história da companhia de dança. “As minhas fontes de pesquisa e de metodologia são baseadas na dança teatro, com um pouco das essências de Klauss Vianna, bailarino e coreógrafo brasileiro. Os processos coreográfico são a partir dessas bases que eu tenho de formações, de musicalização, de vivência de cada indivíduo e a gente pesquisa juntamente com as movimentações, com as leituras dinâmicas que nós temos.”


O grupo busca a versatilidade de misturar ritmos e estilos coreográficos (Foto: Mário Castro)


Porém, ele confessa alguns números que guardam um lugar especial em seu coração. “Gosto muito de ‘Atos de Fé’, gosto muito de ‘Recortes de um Corpo Mambembe’, ‘Nas Trilhas do Manguezal’, gosto muito da nova coreografia que é ‘Frevança’ e gosto da mais nova coreografia que é ‘Caboclo Arengueiro’”. Enquanto grupo, também é perceptível essa indecisão na hora de escolher um número favorito. Para Higor Costa, sua obra favorita é ‘Frevança”, onde ele interpreta um passista de rua. Para Kenia, apesar de possuir um grande apreço por Frevança, a primeira coreografia que ela dançou, a coreografia mais marcante para si é ‘Nas Trilhas do Manguezal’. Para Stefanie Cristina, artista que entrou no elenco este ano, a obra mais marcante para si é a nova produção chamada ‘Matingueiros’.


Hoje, Brasília enxerga a Cia. Transições como grupo de dança popular, mas assim como seu nome diz, eles transitam entre estilos de dança. “Nossas referências de cultura popular é o nordeste. As pesquisas coreográficas tem como embasamento o frevo, maracatu, xaxado, o coco, cavalo marinho, maracatu Rura, maracatu nação, vários ritmos nordestinos que nos impulsionam a criar. Mas, existe uma estética que eu gosto muito que são as danças brasileiras de outros estados, como o próprio funk carioca, que é o passinho, e o próprio samba, samba de gafieira, que eu gosto muito e são estilos que eu quero trabalhar futuramente”, explica o criador.


Assim como Kenia, Higor já estava em contato com o Nordeste em forma de movimento antes de entrar no grupo. Ele era praticante de capoeira e foi convidado para fazer do grupo, e com a visão de poder experimentar novos ares, ele aceitou o convite. Hoje, ele explica que suas recompensas com o grupo são diárias, o resto é apenas consequência da dedicação e a forma que o grupo trabalha em cada projeto. “Transições é o que me move, na qual onde eu supero os meus limites, eu me expresso através do meu corpo”.

“Transições é o que me move, na qual onde eu supero os meus limites, eu me expresso através do meu corpo”, relata Higor Costa.

As gratificações de estar na Transições são diárias para Higor (Foto: Mayariane Castro)


Stefanie Cristina, vinda de família piauiense, comenta com humor que sempre possuiu um pé no Nordeste. Com um pé no Nordeste, é na ponta do pé que ela se encontra desde pequena, em contato com a dança popular e dançando ao longo da sua infância. Em 2016, entrou no grupo de quadrilha “Si Bobiá a Gente Pimba”, mais uma manifestação cultural característica do Nordeste. “Esse ano, o Lehandro me convidou para fazer parte do elenco, obviamente eu aceitei porque eu tava apaixonada pelo grupo e tudo que ele fazia. O que eu mais gosto na Transições é a forma como eles usam o corpo, o significado de cada coreografia, a forma se ressalta toda a cultura popular do Brasil, pois mistura um pouquinho de cada ritmo”.


Para Kenia, há um leque de opções em relação ao que ela mais gosta no grupo. Ela explica que a diversidade coreográfica, a energia dos demais bailarinos, a criatividade, e principalmente a oportunidade que é dada para corpos diferentes, bailarinos de diversas áreas e gostos são os pontos principais que a fazem amar a Transições. É esta conexão entre bailarinos que fazem o grupo ultrapassar horizontes e se tornar uma família.


O misto de emoções transpassadas através de movimentos pela dança no grupo não passa despercebido. Tanto pelas expressões faciais, quanto pela emoção colocada em cada passo, cada coreografia, é capaz de sair do palco e alcançar a alma do público que os assiste. “O que eu mais gosto na Transições é a emoção. Eu acho que uma emoção genuína do que a gente se trata de dança, a gente não se preocupa somente com a técnica".


“Gosto de extrair dos bailarinos os seus reais sentimentos pela arte, pela dança e deixar isso muito transparente com cada corpo", confessa Lehandro.

O grupo possui uma grande preocupação com a cultura local. Em 2019, eles tiraram do papel a ideia de um projeto que buscava incentivar a dança de diferentes formas, com oficinas e apresentações. Assim, surge a primeira Mostra de Dança de Planaltina, organizada pela Cia. Transições e a segunda edição do evento está nos planos futuros do grupo, que quer também apresentar seu novo repertório ao público após o período de pandemia. “Temos o 'Atos de Fé' que é um espetáculo novo, temos 'Na Pegada Popular no Coração do Brasil' que também é um novo espetáculo e temos como futuro fazer a nossa segunda Mostra de Dança de Planaltina.”



Lehandro Lira na Primeira Mostra de Dança de Planaltina, em março de 2019 (Foto: Mayariane Castro)

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