Por Mateus Souza Em uma roda de conversa antes do show, alguns repentistas divagam na área externa da Casa do Cantador, em Ceilândia. Entre cada palavra, evidencia-se a vontade de criar poesia e expor um verso que acaricie os ouvidos. Os artistas, que fazem da palavra sua matéria prima, se unem com outros cantadores, a maioria nordestinos, para falar do poder da rima que vem de repente e não perde a elegância. Ao lado, a viola descansa em uma cadeira, enquanto os repentistas se servem com um copo de café.
Um desses cantadores é o brasiliense João Santana, de 40 anos. Filho de mãe piauiense e de pai goiano, ele relata que o primeiro contato com o repente foi por inspiração da mãe, que tinha discos de artistas do gênero, como Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio.
“Teve um disco deles que foi muito famoso: Violas de ouro. Ouvindo esses discos da minha mãe, eu já jovem gostei bastante e fui treinando. Meu pai é músico e tocava violão. Ele disse que eu ficava inventando coisas assim desde pequenininho.”
Treinando por conta própria desde a infância, João decidiu se aventurar entre os grandes nomes do repente que visitavam a capital. Um dos momentos mais decisivos de sua história ocorreu durante um festival na Casa do Cantador, há cerca de 20 anos. Naquela ocasião, ele e um amigo que faziam “uns versinhos” foram convidados por Geraldo Mouzinho, cantador de coco de embolada, a comparecer ao espetáculo. Ao chegar à Casa do Cantador, João conversou com o repentista nordestino Ismael Pereira.
“Ele falou ‘procura o Chico de Assis que ele é um repentista aqui de Brasília que precisa de alguém para cantar com ele’. Na época nós éramos chamados de repentistas universitários. Eu entrei em contato com o Chico, comecei a fazer uma apresentação ou outra, deu certo, e estamos aí até hoje.”
Habituados com o calor do público e com os pedidos que saem da plateia, João Santana e Chico de Assis se adaptam ao contexto pandêmico, para que o distanciamento não manche o prazer de fazer um verso acolhedor.
“Voa sabiá
Do galho da laranjeira
Que a bala da baladeira
Vem zoando pelo ar” (Geraldo Amância)
Assim começa o repente da dupla que se apresenta em frente às câmeras, com um público que os acompanha através da internet. O som viaja de um estúdio improvisado na Casa do Cantador até as casas dos ouvintes, assim como o sabiá do gênero introduzido na Cantoria de Viola Nordestina.
A Casa do Cantador abre espaço para a força do repente na capital. Ela representa uma ponte entre os nordestinos que vieram para construir Brasília e a parcela da população que já nasceu aqui. João afirma que o local é conhecido até entre os repentistas que vivem no Nordeste.
Entre reuniões e batalhas
Há algumas décadas, o repentista era tido como uma celebridade. João relata que Chico de Assis testemunhou a passagem de Otacílio Batista (1923-2003), famoso cantador que fez parceria com Zé Ramalho, por “uma cidade” no interior do Rio Grande do Norte. Com sua cultura mais ligada ao contexto regional, a população ficou eufórica ao descobrir que o artista passaria por lá e se aglutinou para ver o cantador. Com o atual tsunami de informações e a diversificação de estilos musicais, o repente passou a competir por espaço. Trata-se de uma arte ligada à criação poética. Tanto para quem conhece a métrica quanto para quem apenas aprecia os versos, o repente sempre exibe novos coloridos.
João Santana fala que no passado os cantadores disparavam versos livres, sem a definição de um tema. Naquela época, artistas como Pinto do Monteiro (1895 – 1990) eram muito conhecidos por sua incrível velocidade nas respostas.
“Hoje eu diria que nós já temos duas ou três gerações após a dele e, naquela época, o decassílabo (verso com 10 sílabas), que era o martelo agalopado, ainda não era tão bem desenvolvido.”
Atualmente, as competições, segundo relatam os cantadores, são organizadas por temas decididos previamente e menos sujeitas à base do improviso. A batalha do repente se assemelha a uma elegante luta de raciocínio e poesia.
Papel Social
João Santana destaca que o repente acumula, além de manifestação cultural de um povo, um papel social que excede à nostalgia. Ele se recorda de cantadores como Fabião das Queimadas (1848-1928) e Inácio da Catingueira (1845-1878). Esses lendários artistas nasceram escravos e compraram sua alforria por meio do repente, com o dinheiro que recebiam da cantoria.
O cantador brasiliense enfatiza a capacidade que o repente tem de reunir as pessoas. Entre 1850 e 1900, a população da região do Teixeira, na divisa com Pernambuco, no Sertão da Paraíba, se juntava em uma roda para assistir à beleza de uma cantoria.
Na noite do dia 14 de novembro de 2020, em plena pandemia, mesmo após tantos anos, essa energia transpassou a distância e a concorrência em meio ao mundo digital. A arte da poesia e do repente mantém a sua regionalidade e a chama que Ariano Suassuna tanto lutou para manter acesa.
“Ariano Suassuna bebeu muito na fonte desse universo do sertão nordestino. Eu até diria que a maioria dos cantadores repentistas sequer leu Ariano Suassuna, mas já tem uma formação cultural por viver naquele ambiente onde Ariano foi se inspirar”, acredita João.
Por outro lado, quem não vivenciou ou nasceu no seio da cultura nordestina tem a oportunidade de experimentá-la por meio das obras desse escritor.
Foto: Valter Campanato / ABr
“Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.”
A cantoria, a poesia e a literatura vivem nos versos escritos por Ariano. Assim como também vivem nos versos dos repentistas que nunca ouviram falar dele.
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