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Cordelistas brasilienses: poesia encantada de criatividade e espírito nordestino

Por Evellyn Luchetta, Geovanna Bispo e Helena Mandarino


“Vem dizer que meu cordel

É um pobre pangaré

Que seu tempo tá datado

Que ninguém mais bota fé

Que é folclore, coisa antiga

Coisa assim sem lé, nem cré…”


Foi em uma praça na cidade de São Jorge (GO), na Chapada dos Veadeiros, em 2013, que Davi Mello, de 30 anos, esteve diretamente em contato com o cordel pela primeira vez. “Era um evento de encontro de culturas. Eu vi no meio da praça um jovem contando uma história meio doida de um dia que um acarajé baiano lutou contra um bigmac americano e era um cordel.” Davi conta que já conhecia o cordel, mas a situação inusitada gerou um encanto pela literatura que o levou, posteriormente, a escrever. “Aos poucos, fui estudando mais as métricas, as rimas, fazendo umas coisas mais para mim”. Na guerra do acarajé com o bigmac, quem ganhou foi a literatura cordelista.


Apesar do contato direto com o cordel ter vindo apenas em 2013, o amor e respeito de Davi pela cultura popular vieram alguns anos antes. Em 2011, o cordelista leu uma das principais obras do poeta e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), ‘O romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue Vai-e-Volta.’ “Eu fiquei nove meses lendo o livro, foi quase um parto mesmo, que me abriu e me fez conhecer esse universo da cultura popular.”

O livro é baseado na cultura popular nordestina e na literatura de cordel. As obras de Suassuna, criador do Movimento Armorial, são inspirações para muitos artistas como Davi. “O Ariano é a figura de um cânone, de um poeta grandioso, que soube como poucos como retratar o sertão e a cultura popular”, completa Sabiá Canuto, cordelista e professor.


“É que mesmo os editais

De cultura não tem dado

Pra ele lugar ao sol

E o cordel desventurado

Assim segue o seu destino

“Patrimônio do passado”.


O cordel é uma manifestação literária tradicional do interior nordestino. As obras se utilizam do humor e da linguagem coloquial para retratar o folclore brasileiro, religião, política e principalmente utilizado como crítica social.


Foto: Reprodução/Senado.


O jovem da praça que despertou em Davi o desejo de escrever cordel era o Ceilandestino Alex Canuto, de 34 anos, mais conhecido como Sabiá. Nascido na região da Ceilândia, Sabiá usa o termo Ceilandestisno como uma forma de mesclar sua origem Ceilandense e sua ancestralidade nordestina, que se mantém viva mesmo morando distante do sertão. “Meus avós são nordestinos, minha família, e desde que eu fiz essa reconexão com o Nordeste, eu venho escrevendo esses cordéis.”


Mas foi apenas em 2007, ao ingressar na Universidade de Brasília (UnB) que Sabiá entrou em contato com a literatura de cordel. A maior aproximação veio por intermédio do artista Mestre Zé do Pife, que usava o espaço da Universidade para dar aulas de pife e percussão para a comunidade. “A presença dele foi um divisor de águas na minha trajetória porque eu já escrevia antes de entrar na UnB, mas ele me despertou para escrever a literatura de cordel.”


Confira Sabiá recitando parte do Cordel “Cordelário”



“Por isso que não tem dessa

de dizer que “tá passado”

o cordel é movimento

Trio Elétrico pilhado

Que pelas ruas da métrica

Vai abrindo seu traçado.”



Junto a Sabiá e Davi Mello, Keyane Dias e Fernando Cheflera criaram, em 2019, o Coletivo cordelista Passarema. “Coletivo de poetas populares da nova geração cerratense, que erguem o estandarte do cordel para poetizar o mundo afora e mundo adentro.”. O Cordel Passarema define-se como “poética estradeira de publicar folhetos pendurados nos varais do mundo”.


Foto: Instagram/reprodução


Keyane Dias é cordelista, jornalista, professora de yoga e parceira do Coletivo Passarema. Influenciada por Manoel Dias de Oliveira, seu avô paterno, admirador da literatura de cordel, repentista e paraibano, Keyane começou a escrever em 2016 e, hoje, caminha para publicar seu terceiro cordel, chamado Palavras Mensageiras. “Meu objetivo é compartilhar uma mensagem que traz as pessoas para um olhar mais amplo do que é a vida, tanto pra terra da onde a gente vem, tanto pra onde a gente vai, ou quem a gente é”.


A primeira obra publicada pela autora, o cordel "Benzadeus!", diz respeito aos saberes de tradição oral perpetuados por mulheres como parteiras e benzedeiras. “O cordel historicamente reproduz um olhar preconceituoso sobre várias questões. Foi majoritariamente escrito por homens brancos, letrados e hoje a gente constrói nossas narrativas nessa linguagem. Então, falar de mulheres, do feminino, do feminismo no cordel pra mim é muito importante porque é uma linguagem acessível”

Além da sua própria narrativa, Keyane também se inspira em cordéis de outras mulheres que têm o mesmo objetivo, o contato aconteceu através do movimento #CordelSemMachismo, que reúne cordelistas do Brasil inteiro através da hashtag na rede social Instagram. “O movimento surgiu porque uma mulher denunciou o machismo que existe no cordel e sofreu retaliações. Eu conheci mulheres incríveis que escrevem coisas semelhantes e afetuosas. Você percebe que a narrativa delas é muito diferente do que a gente tá acostumado a ver e tem construído novas visões”.



“O meu cordel brasileiro

Pôs na mesa meu café

Pôs no prato meu cuscuz

Já cruzou légua de pé

Na feira disse “bom dia”

E mesmo na revelia

Persistiu cantar com fé.”



O brasiliense João Santana, de 41 anos, é cordelista, repentista, e produtor cultural. Entrou em contato com cultura nordestina desde a infância por influência dos pais. Ao longo dos anos, ele afirma já ter perdido a conta de quantos cordéis já publicou. Ele explica que a ideia dos versos é sempre gerar debates e reflexões.. “O livreto vai ter um tema e a ideia é que sempre leve uma informação que seja gostosa de ser ouvida e útil”.



Entre os temas de seus versos, estão a saúde mental, direitos dos trabalhadores, a casa do contador e as desigualdades sociais. “Sobre o cordel, meu objetivo é interno, de dar vazão à força de criação poética que nasce de dentro, que nasce do peito”. O artista complementa que, ao mesmo tempo em que busca trazer conteúdo útil, quer mostrar a importância dos elos de humanidade da sociedade.


“As portas do entendimento

Pra pescar o imponderável

Pra dizer o indizível

Do profundo inominável

O que não possui contorno

No mistério incontornável.”


Onã Silva é graduada em enfermagem e artes cênicas, cordelista e desenvolve diversos projetos como histórias da enfermagem (em cordel e quadrinhos). Ela acredita que quem escreve literatura já nasce com esse talento. “A escrita veio junto comigo. Antes mesmo de aprender a escrever, eu já tinha histórias na minha imaginação. Quando eu comecei a ler e escrever, eu já comecei a rascunhar. Então, desde sempre, eu considero que eu produzo, eu escrevo, eu transito nesse mundo da imaginação”.



Apesar de ter, desde sempre, uma grande imaginação, Onã destaca que cada cordel demanda processos diferentes e não surge apenas da imaginação. “O processo de produção das minhas obras depende do tema. É um processo multifatorial. Por exemplo, quando eu escrevo minhas obras sobre o universo da enfermagem e no gênero de cordel, eu preciso pesquisar biografias, referências fundamentadas”.


“E aqui te peço corda

Do infinito carretel

Nesse arranjo de palavras

Que costuro no papel

Feito de matéria vida

Pra tecer fio de cordel”


*** Cordel usado durante o texto foi escrito por Sabiá Canuto.



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