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Quando roupas são memórias

O estilista Sávio Pereira lembra como costurou a vida do sertão do Piauí para a capital do país, e explica o que chama de “história da cultura do sol”


Por Bruna Moreira e Nathan Martins


Sávio Drew. (Arquivo pessoal)


Vela, água do poço e nomadismo. Assim nasceu e cresceu Sávio Pereira, estilista, professor e idealizador da marca brasiliense Drew. No município de Anhuma (PI) (hoje, com 15 mil habitantes), ele morava em uma vila que não passava de duas dezenas de moradores. Estes viviam sob uma espécie de feudalismo sertanejo. “Principalmente no interior, acontece muito de existirem senhores que têm terras e as pessoas que não têm terras vivem na servidão. Elas moram e trabalham nas fazendas em troca de um teto. O senhor geralmente mora na capital. E até hoje existem pessoas que vivem sob esse sistema de servidão”, disse em entrevista à reportagem.


“A minha infância foi pautada nisso. Eu mudei de casa várias vezes porque minha família passava cerca de 1 ano com um senhor e depois mudava para outro senhor. Vivíamos como nômades”, relatou.


Sávio relembra também que a infância foi marcada pela rotina de plantar para comer. Não existia salário, dinheiro, moeda. A família plantava quase tudo que precisava para consumir e caçava a carne de animais silvestres. “Só comprávamos óleo, sal e açúcar. As outras coisas a gente produzia: farinha, arroz, feijão, azeite de côco. Passei minha infância quase toda sem energia elétrica. Era na vela. E a água, só do poço.”


Com o passar dos anos, a família decidiu ir para uma cidade vizinha (Bertolínia), com cerca de 3 mil habitantes, para que os filhos pudessem estudar. Na vila, não tinha escola. Construíram uma casinha e assim vieram os primeiros contatos com energia elétrica, televisão e o mundo exterior. Foi aí que Sávio viu seu lado criativo despertar em forma de desenhos.


Fez o ensino fundamental, aprendeu a apreciar as artes e usar o lápis e o papel para inspirar formas do que via pelos vilarejos.


A história começou a mudar quando Leide, mãe de Sávio, empregada doméstica, foi trabalhar na casa de duas mulheres responsáveis por uma obra de asfaltamento em uma estrada da cidade. Uma engenheira e outra bióloga. “Sempre busquei inspiração nelas. Eram pessoas formadas, eu queria aquilo para mim”, pensava o então adolescente.


Quando uma tia de Sávio, que mora em Brasília, foi passar as férias no Piauí, o menino enxergou uma oportunidade de buscar seus sonhos fora do interior nordestino. Ele pediu para vir morar com a tia, que aceitou de pronto. Assim começou a jornada de trazer a história da cultura do sol para a capital do país.


“Desde que comecei o ensino médio aqui em Brasília, eu sabia que estava em uma missão: eu tenho que dar certo, vim para cá para estudar e não deixaria nada me atrapalhar. Sempre fui muito próximo dos meus professores de artes, a ponto de sair, visitar espaços culturais com eles”. Seu maior sonho era cursar desenho industrial e depois fazer uma especialização em design de moda, mas começou pelo fim. “Consegui uma bolsa de 100% pelo Fies em uma universidade particular para o curso de design de moda. Eu tinha vontade de fazer isso porque eu sempre vi a moda como um lugar para contar histórias através de roupas e coleções”. Sávio descobriu que seria pela moda que ele homenagearia as suas mais profundas raízes.


“Em Brasília, percebi que as pessoas têm receio e vergonha de falar que são nordestinas, como se a nossa história não fosse importante de ser contada. Quando comecei a faculdade e fiz amigos, eu vi que eu tinha uma história para contar. As pessoas aqui têm uma história muito parecida porque vivem na cidade grande, é escola, celular na mão, bairro… e eu vi que eu era muito diferente. Então eu decidi me aproveitar disso, porque eu tenho uma vivência diferente. Eu vivi por muitos anos sem energia elétrica e eles já nasceram com ar-condicionado.”


A marca Drew, fruto do TCC de design de moda, segue os princípios do slow fashion e do upcycling (técnica que reaproveita materiais já utilizados): as peças são feitas com tecidos descartados por grandes fábricas, por estarem manchados ou com pequenas imperfeições. Toda a produção é manual e sustentável. Assim, Sávio cria peças exclusivas e repletas de memórias.


Sua maior inspiração é sua avó, Maria, 86 anos, que ainda mora em Anhuma. Uma mulher preta, nordestina, que perdeu o marido e criou 12 filhos sozinha.


O estilista e diretor criativo diz que suas origens são sua maior fonte de referências. Sempre que vai criar, ele volta para o Nordeste. “Eu via muita moda inspirada em cultura de fora. Por que não criar moda inspirada no nosso país também? Eu criei a Drew justamente para fazer produtos inspirados na minha realidade. Se eu crio algo inspirado no Nordeste, tem muito mais chance de acerto, porque é o que eu conheço”.


Da “coleção Mangaio”, inspirada nas populares feiras do Nordeste, surgiu o carro-chefe da marca: as bolsas Maria, produzidas a mão pela artesã piauiense de mesmo nome. “A bolsa Maria foi inspirada nas mulheres fortes do Brasil profundo. Marias catadeiras de coco babaçu no Piauí, Marias bordadeiras de Alagoas, das que cultivam o caju no Ceará, e das marias que resistem nas grandes cidades com muita força e resistência.”, conforme descreve a bolsa.



Bolsa Maria e Bolsa Capanga, editorial da coleção Mangaio. (Divulgação/saviodrew.com)


Do cangaço, Sávio criou Obi. A coleção busca desmistificar o banditismo e a marginalização atribuídos ao eterno Lampião. Mais uma vez, ele mostra que o Nordeste é muito mais do que ouvimos falar


“A vida dói, mas a gente gosta. Quem nasceu trapaceado tem que aprender a trapacear. Es ese el juego en lo trópico. É por isso que os gringos se desmancham quando chegam aqui. É preciso ser latinoamericano. É preciso ser brasileiro. É preciso ser nordestino. É preciso ser Lampião. Viver pra gente é isso. Se não vêm oitenta tiros e ela acaba. Neste exato momento uma mariposa pousa em meu braço, o coração taquicardiaco um beija-flor para no interior do Piauí, uma mulher se descobre grávida no prédio ao lado e você revisita a vida épica de um pernambucano pobre. É assim que a História acontece: aqui y ahora.”



Editorial da coleção Obi (Divulgação/saviodrew.com)


Quando Sávio leva suas criações para Anhuma, vê a alegria que seu povo sente ao ver suas histórias tão bem representadas pelo Brasil afora.Quando eu levei os produtos para a vila, foi uma festa. Todo mundo queria ver. Minha prima, de 5 anos, foi modelo nessa última vez que eu fui. Eu faço isso para ver se salva alguém de lá, se planta essa sementinha para eles quererem sair daquela realidade também”. O artista afirma que que deseja levar informação para influenciar familiares e outros conterrâneos. “Minhas primas até pedem para morar comigo um dia, porque elas veem que é diferente.”


Ele testemunha também que todos da cidade têm muito carinho por ele e que, na escola da cidade onde cresceu, os professores criaram uma apostila com a história de Sávio do Piauí até Brasília, a jornada de sua marca e todos os seus trabalhos, para os alunos estudarem compreensão textual. O que cativa essas pessoas, ele conta, é enxergar a importância de contar histórias sem renegar suas origens.


Além da Drew, Sávio Pereira criou outro projeto. O Brazil 1.99 é um coletivo que aborda a temática das feiras populares brasileiras e o jeito espontâneo com que os nordestinos se expressam visualmente. Através de documentários e fotografia o coletivo discute a forma que as pessoas ocupam as ruas, “transformando gambiarra em algo incrível”. Nos editoriais de moda, sacos plásticos, retalhos de chita e sacos de laranja viram roupas.



“O coletivo barraca itinerante Brazil 1,99 procura estudar as diversas formas como o brasileiro

vive a realidade nacional e como essa vivência é traduzida em produto, narrativa e cultura

overall. Procura questionar, por meio do audiovisual, da moda e de relatos dos brasileiros

reais, porque costumamos dar mais valor ao externo se o interno é tão rico e multicolorido.”

(Divulgação/saviodrew.com)


Em parceria com Pedro Hermano, o estilista busca mostrar que a pobreza nordestina não é uma condição degradante e que a cultura brasileira é, por si só, arte.


“Sempre falam dos nordestinos como miseráveis, mortos de fome. A gente vive com pouca coisa, em um sistema de exclusão. Mas isso não quer dizer que somos miseráveis, só somos pouco assistidos. Também não somos mortos de fome. A gente come, e muito bem!”


Recentemente, a marca Drew lançou nas redes sociais sua mais nova campanha, “As Marias”. Sávio se inspirou nas duas gerações de Marias em sua família: a prima, de 5 anos, e a avó, de 86 anos. Foi inspirada nelas e foi feito com elas, para elas se sentirem pertencentes a isso”. O filme da campanha mostra o Nordeste em sua forma mais pura: resistência com muito otimismo.



Editorial de “As Marias”, em Anhuma - PI. (Divulgação/saviodrew.com)


“Para essa nova campanha eu quis alumiar o lugar onde nasci e jogar luz sobre as mulheres que me inspiram. “As Marias” é sobre resistência nordestina, sobre força feminina e sobre um Brasil impossível. Mesmo em meio ao caos nacional que estamos vivendo, meu convite com esse trabalho é mostrar que existe beleza na simplicidade, no feito a mão, na cultura do sol e nos grandes sertões do Brasil”, explicou em editorial.


O objetivo de Sávio é levar a Drew para a fronteira do Brasil com a América do Norte. Eu quero falar “Cara, escuta a história do seu país antes de atravessar essa fronteira. Não busca referência lá fora porque aqui dá pra fazer tudo.”


Ele tem um coração nordestino que reflete, naturalmente, em tudo que faz. Ele diz que o Nordeste é outro tempo e espaço. Sávio acredita que o nordestino do interior sabe aproveitar melhor a vida. “Aqui a gente tem discussões diárias que não existem lá. Mas quando eu volto para lá, eu me sinto no lugar mais luxuoso da terra. Querendo ou não, a ignorância te traz benefícios, como não saber que o mundo está ‘se acabando’”. Para ele, a região é o coração da cultura popular brasileira, por ser espaço histórico de resistência. “Acho que eles vivem mais porque se preocupam menos. O sistema não olha para eles, então eles também não olham para o sistema. Eles não têm os desejos frívolos, essa vigilância que a gente tem na cidade grande.”


Como Sávio diz, o Nordeste é um universo particular. Cada história contada tem mais universos ainda. Cada roupa, nem se fala. E como diz o cordel de divulgação das novas peças, “O nome Brasil podia ser Maria.”


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